Notícia do dia 1º de setembro do corrente ano dá conta de que Tsuwa Watanabe, de 39 anos, candidata ao cargo de Agente de Organização Escolar foi considerada inapta pela comissão do respectivo concurso público para o exercício da função pelo fato de, segundo o Departamento de Perícias Médicas de São Paulo, ser portadora de obesidade mórbida.
Não é a primeira vez que o poder público do estado de São Paulo adota tal conduta. No dia 2 de fevereiro de 2011, o Brasil acompanhou, com perplexidade, o caso envolvendo a eliminação de candidatos a professores da rede pública do estado de São Paulo, ocorrida durante a realização dos exames de saúde, e motivada pela obesidade que os acomete. Em síntese, referidos candidatos denunciaram que, no momento da avaliação de saúde, foram vetados pelo setor de perícias médicas responsável pelos exames, ao argumento de que a obesidade é oficialmente uma doença. Por isso os portadores desse mal não estariam aptos a integrar o funcionalismo público, em que pese terem demonstrado estar clinicamente saudáveis, através dos resultados de outros exames.
A questão acende, então, fértil discussão acerca da constitucionalidade da eliminação de candidatos a esse tipo de função por motivo de obesidade. Analisando as implicações jurídicas envolvendo o tema, é possível extrair alguns fundamentos jurídicos que permitem concluir que esse ato por parte do Poder Público encontra-se totalmente divorciado das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito.
Investigando as bases constitucionais pertinentes ao tema, dispõe o artigo 37, incisos I e II, da Constituição Federal:
Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que a Constituição Federal conferiu à lei a tarefa de regular o acesso aos cargos e empregos públicos. Como parâmetro a ser utilizado para afiançar os argumentos aqui expendidos, a Lei 8112/90 disciplinar o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo que os requisitos básicos para a investidura em cargo público estão dispostos no artigo 5º, e incisos, do diploma legal supra citado, a saber:
Artigo 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:
I – a nacionalidade brasileira;
II – o gozo dos direitos políticos;
III – a quitação com as obrigações militares e eleitorais;
IV – o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;
V – a idade mínima de dezoito anos;
VI – aptidão física e mental.
Das exigências legais acima, extrai-se que o legislador ordinário, cumprindo o comando constitucional, estabeleceu critérios objetivos para o ingresso no funcionalismo público, sendo que, em relação à aptidão física e mental (inciso VI), em homenagem aos princípios que regem nosso ordenamento constitucional, tal requisito deve ser avaliado de acordo com cada caso específico. Isto é, observando-se a natureza da função a ser exercida pelo candidato eventualmente aprovado, de modo que não haja distorções na aplicação desse critério e, consequentemente, injustiças para os candidatos.
Um dos traços de maior destaque nos concursos públicos é a garantia de igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode estabelecer restrições de acesso a determinados cargos, e, mesmo assim, só nos casos em que determinadas características inerentes ao candidato forem incompatíveis com a natureza da função a ser desempenhada. Isso decorre do princípio da isonomia, o qual está explícito no artigo 5º, caput e implícito no artigo 3º, inciso IV, ambos da Constituição Federal, e que proíbe, consoante esse último preceptivo, quaisquer formas de discriminação, expressão essa que nos adverte que o rol de elementos discriminatórios rechaçados pela Constituição Federal não é exaustivo, mas meramente exemplificativo.
Nesse passo, cabe registrar a irretocável lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, no sentido de que “os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames” (Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pág. 194).
Sendo assim, encontramos um dos fundamentos jurídicos a coibir tal prática por parte do Poder Público, na medida em que, no caso dos professores tolhidos do certame, a alegação de que são obesos não pode servir de óbice para a aprovação no concurso, na medida em que a atividade a ser por eles desempenhada é, preponderantemente, intelectual. Portanto, a atitude do poder público, data maxima venia, extrapola a órbita do interesse público e foge aos critérios objetivos de avaliação do candidato.
A obesidade, em suas diversas causas, consoante a Classificação Internacional de Doenças (CID), de fato é considerada uma doença. Entretanto, se esse mal for considerado um óbice à ocupação do cargo de Agente de Organização Escolar, também deverão ser inadmitidos no serviço público tantos quantos forem os portadores de outras doenças, tais como os portadores de doenças visuais (miopia, astigmatismo, hipermetropia etc.), os diabéticos, enfim, os portadores de diversos outros males que também são internacionalmente classificados como doenças. Nesse sentido, inclusive, deverão ser inadmitidos no serviço público os portadores de necessidades especiais, que hoje, aliás, são cotistas em concursos públicos, por expressa determinação constitucional constante do artigo 37, inciso VIII, da Constituição.
Ora, seria absurdo!
Nesse caso, a obesidade nada guarda relação com o desempenho das funções para as quais a candidata prejudicada se inscreveu. Seria diferente se, por exemplo, ela estivesse participando de uma seleção para policial militar, oficial das Forças Armadas, bombeiro, enfim, profissões em que o primor físico é indispensável para o desempenho das respectivas atribuições. Aliás, sobre esse tema é interessante abrir um breve parêntese, pois nem mesmo essas corporações estão livres da obesidade, uma vez que é comum vermos pelas ruas policiais muito gordos, sem qualquer condição de empreender eventual perseguição a quem esteja em fuga.
Continuando nessa trilha, basta ligarmos nossos televisores nos noticiários para vermos nosso Congresso Nacional e assembleias legislativas abarrotados de parlamentares obesos; basta darmos uma volta pelos fóruns e tribunais brasileiros para encontrar juízes, promotores, procuradores públicos e serventuários obesos; prefeitos, governadores. O funcionalismo público brasileiro, de um modo geral, é gordo! Ou algum leitor ousa dizer que a maioria de nossas lideranças políticas e demais integrantes do funcionalismo público é “saradinha”?
É óbvio que não!
Dessa forma, caso a eliminação dessa candidata seja mantida, em homenagem ao já citado princípio da isonomia, os candidatos à magistratura, MP, AGU, agências reguladoras, bancos, estatais etc. deverão se cuidar a partir de agora, pois, como diz a máxima jurídica, “onde existe a mesma razão existe o mesmo direito”.
Nossos políticos também deverão abrir os olhos, já que as instâncias da Justiça Eleitoral deverão também indeferir a candidatura dos rechonchudos, e será dever do eleitor não votar naqueles que certamente conseguirão burlar até mesmo as balanças. Quiçá será lançado algum programa chamado Ficha Lipo.
Cabe lembrar que a obesidade possui origens das mais variadas, que vão desde maus hábitos alimentares, sedentarismo, enfim, o desleixo com a própria saúde, até aquelas de origem genética, tendentes, conforme o caso, a jamais desaparecer. É preciso lembrar que existem pessoas obesas que podem jamais conseguir emagrecer ou, no máximo, não emagrecerão o suficiente para alcançar o patamar considerado ideal pelas autoridades em saúde. Todavia, do ponto de vista intelectual, pessoas obesas são plenamente capazes de exercer funções de professor e correlatas. Não é necessário ser magro para pensar.
Inteligência, raciocínio, criatividade, assiduidade, pontualidade, comprometimento. Esses são, principalmente, os atributos desejados de um funcionário público.
Ponderação e justiça: estes são, necessariamente, deveres constitucionais do Estado.
Nota do autor: o presente texto é uma reedição adaptada do artigo intitulado Candidatos obesos, concursos públicos e o peso da justiça, publicado no ano de 2011 em diversos periódicos jurídicos impressos e eletrônicos.
Fonte:Conjur
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